SAEB: Estamos Realmente Medindo Qualidade ou Apenas Produzindo Números?

 


Até que ponto o SAEB avalia a qualidade da Educação Brasileira? Essa é a pergunta que tem me tirado o sono e que deveria estar no centro do debate educacional do nosso país. Há 33 anos, esse sistema de avaliação promete nos dar um diagnóstico preciso da educação, oferecendo dados concretos que permitiriam entender e melhorar nosso ensino. Mas será mesmo? Quanto mais me aprofundo na realidade das escolas, quanto mais converso com professores exaustos e alunos ansiosos, mais essa pergunta se torna incômoda e urgente: será que estamos realmente medindo qualidade educacional ou apenas transformando a educação em uma grande corrida por números?

O Que os Professores Têm a Dizer

Depois de muito dialogar e conhecer diferentes realidades de professores e professoras que atuam na educação básica, um padrão emerge com força perturbadora. Maria (nome fictício), professora há 15 anos em uma escola pública da periferia, com olhos cansados mas ainda com aquele brilho de quem acredita na educação, resume bem o drama: nos últimos três meses antes do SAEB, ela teve que abandonar o projeto de leitura que seus alunos adoravam. "Não há tempo para isso", disseram-lhe. "Precisamos focar no que cai na prova."

Maria passou a aplicar simulados semanais. Treinou seus alunos em técnicas de múltipla escolha. Deixou de trabalhar História, Geografia, Artes, Filosofia. Português e Matemática — apenas isso. E quando os resultados saíram e não foram os esperados, sabe quem foi responsabilizado? Ela. Sempre ela.

Me pergunto: onde estava o sistema que a deixou sozinha com 40 alunos por turma? Onde estava a política pública quando faltava merenda, quando o teto gotejava, quando os livros didáticos chegavam com seis meses de atraso? Ah, mas isso o SAEB não mede, não é mesmo?

O Que Realmente Estamos Avaliando?

Vamos ser honestos. O SAEB avalia competências cognitivas em Português e Matemática. Ponto. E é aqui que mora o primeiro grande problema: desde quando qualidade educacional se resume a duas disciplinas?

Depois de 33 anos de SAEB, continuamos fingindo que não vemos o óbvio: uma educação de qualidade não cabe numa prova de múltipla escolha. Educação de qualidade é aquela menina do interior que descobre sua paixão pela astronomia, é aquele menino da favela que encontra sua voz através do teatro, é a turma inteira que aprende a debater com respeito, a pensar criticamente, a se reconhecer como cidadãos.

Mas o SAEB não mede isso. Não mede criatividade, não mede pensamento crítico, não mede capacidade de trabalhar em equipe, não mede empatia, não mede cidadania. Mede apenas se o aluno consegue assinalar a alternativa correta em questões padronizadas.

A Perversidade do "Ensinar para a Prova"

Aqui está uma verdade que precisamos enfrentar: o SAEB está produzindo um estreitamento curricular devastador. Professores de todo o Brasil relatam a mesma coisa — nos meses que antecedem a avaliação, as escolas viram centros de treinamento para provas.

E não os culpo. Quando sua bonificação depende disso, quando seu emprego está em jogo, quando a gestão te pressiona diariamente, quando seu trabalho é julgado por um único número, o que você faz? Você treina. Você simula. Você ensina macetes. Você abandona a educação integral e abraça a preparação mecânica.

Mas a que custo?

O custo é uma geração inteira de estudantes que aprende a decorar, não a pensar. Que desenvolve ansiedade em relação a testes, não paixão pelo conhecimento. Que vê a escola como um obstáculo a ser superado, não como um espaço de descoberta e transformação.

A Farsa da "Responsabilização"

Vamos falar sobre accountability — essa palavra bonita que os gestores adoram usar. No papel, soa bem: escolas e professores devem ser responsabilizados pelos resultados. Quem discordaria disso?

Eu discordo. E explico por quê.

Responsabilizar quem? A professora que trabalha em dois turnos para complementar seu baixo salário? O professor que leciona sem laboratório de ciências, sem biblioteca decente, sem sequer papel higiênico no banheiro e ainda ter que fazer cota para comprar a própria água? A escola que recebe alunos com anos de defasagem de aprendizagem ou vítimas de violência doméstica?

A responsabilização, do jeito que está posta, é uma farsa cruel. Ela coloca toda a culpa em quem está no centro do processo — professores e alunos — enquanto isenta o sistema das suas responsabilidades estruturais.

Pesquisas mostram o que todos sabemos na prática: há escolas podem manipular dados, excluindo alunos com baixo desempenho das provas, criando turmas multisseriadas estratégicas para "limpar" os números. E sabe por quê? Porque quando você cria um sistema que pune sem oferecer condições, você incentiva a fraude, não a melhoria.

A Desigualdade que o SAEB Esconde

Aqui está outro ponto que me tira o sono: o SAEB compara o incomparável.

Ele coloca na mesma régua uma escola federal bem equipada do Leblon com uma escola rural do interior do Maranhão. Ele trata como iguais a criança que tem computador, internet e apoio familiar, e aquela que precisa trabalhar para ajudar em casa e estuda à luz de velas.

Não se pode comparar um aluno de zona urbana estruturada, que recebe financiamento adequado, com um aluno de área rural, onde faltam professores, recursos e estrutura básica. As condições de partida são completamente diferentes, mas o SAEB finge que não.

E o resultado? Um ranking nacional que celebra os já privilegiados e estigmatiza os já marginalizados. Uma competição educacional onde os pobres sempre perdem — não porque sejam menos capazes, mas porque o jogo está viciado desde o início.

E Se Pensássemos Diferente?

Agora, a pergunta que não quer calar: como avaliar, então?

Porque, sim, precisamos de avaliação. Mas precisamos de avaliação que sirva à educação, não que a destrua.

Entre 2015 e 2016, educadores e entidades propuseram o SINAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), que ia muito além do SAEB. Incluía o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), considerava infraestrutura, materiais pedagógicos, formação e salário dos professores, gestão democrática. Avaliava as condições de oferta, não apenas resultados isolados.

Porque a verdade é simples: a aprendizagem só pode ser avaliada considerando as condições em que ela acontece. Não dá para cobrar resultados sem garantir condições.

Imaginem um sistema de avaliação que:

  • Avaliasse todas as dimensões da educação, não apenas Português e Matemática
  • Considerasse o contexto socioeconômico de cada escola antes de fazer comparações
  • Medisse o progresso, não apenas o resultado absoluto
  • Avaliasse as políticas públicas, não apenas alunos e professores
  • Incluísse indicadores de infraestrutura, recursos pedagógicos, valorização docente
  • Fosse diagnóstico e formativo, não punitivo e classificatório
  • Respeitasse a diversidade de projetos pedagógicos e realidades regionais

Utopia? Talvez. Mas qual é a alternativa? Continuar fingindo que números manipulados representam qualidade? Continuar destruindo a autonomia pedagógica? Continuar culpabilizando quem menos tem poder no sistema?

Um Chamado à Ação

Eu me recuso a aceitar que a educação brasileira se resume a um índice. Me recuso a acreditar que 33 anos de SAEB — com todas as suas limitações, distorções e consequências perversas — seja o melhor que podemos fazer.

Precisamos de coragem para questionar. Coragem para denunciar quando professores são transformados em treinadores de prova. Coragem para exigir que se avaliem as condições estruturais, não apenas os resultados.

Professores, gestores, pesquisadores, famílias: não podemos continuar reféns de um sistema que reduz educação a estatística. Não podemos aceitar que a pressão por números produza ansiedade, manipulação e estreitamento curricular.

Educação de qualidade é aquela que forma cidadãos críticos, criativos, empáticos, preparados para os desafios do século XXI. É aquela que respeita a diversidade, promove equidade, valoriza professores. É aquela que se preocupa com o processo, não apenas com o produto final.

Minha Provocação Final

Então, aqui vai minha pergunta para você que chegou até aqui: que educação queremos?

Queremos uma educação que treina para testes ou uma que forma para a vida? Queremos rankings que segregam ou diagnósticos que transformam? Queremos culpabilização ou responsabilidade compartilhada? Queremos números manipuláveis ou qualidade genuína?

Maria, aquela professora que mencionei no início, me disse algo que não consigo esquecer: "Eu não entrei na educação para produzir estatísticas. Entrei para transformar vidas."

E você? Para que você está na educação?

É hora de superarmos modelos ultrapassados que servem mais à burocracia do que à aprendizagem. É hora de construirmos sistemas de avaliação verdadeiramente comprometidos com a qualidade educacional — aquela qualidade que não cabe em índices, mas que transforma destinos.

O SAEB não é o problema. É um sintoma. O problema é maior: é nossa dificuldade de entender que educação de qualidade não se mede apenas com provas, mas se constrói com condições, valorização e respeito.

Está na hora de mudarmos essa conversa.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS ACADÊMICAS

BONAMINO, A.; SOUZA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, v. 38, n. 2, p. 373-388, 2012.

FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, v. 28, n. 100, p. 965-987, 2007.

MELLO, L. R.; BERTAGNA, R. H. Tensões do SAEB e do IDEB para a educação de qualidade como direito. Revista Educação em Questão, v. 58, n. 58, 2020.

MINHOTO, M. A. P. Política de avaliação da educação brasileira: limites e perspectivas. Jornal de Políticas Educacionais, v. 10, n. 19, p. 77-90, 2016.

SAMBRANA, I. R.; SANTOS, F. A. Avaliação externa e seus efeitos na autonomia docente. Retratos da Escola, v. 19, n. 44, p. 537-556, 2025.

SOUSA, S. Z. L. Concepções de qualidade da educação básica forjadas por meio de avaliações em larga escala. Avaliação, v. 19, n. 2, p. 407-420, 2014.

DOCUMENTOS OFICIAIS

BRASIL. INEP. Sistema de Avaliação da Educação Básica: Documentos de Referência. Brasília, 2018.

BRASIL. INEP. Saeb: Sistema de Avaliação da Educação Básica. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb

ESTUDOS E RELATÓRIOS

FUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL. Qualidade da educação infantil no Brasil: análise do Saeb 2021. São Paulo, 2024.


ARTIGOS E REPORTAGENS

FIOCRUZ. "A aprendizagem dos alunos só pode ser avaliada considerando as condições de oferta da educação". Entrevista com Catarina de Almeida Santos, 2018.

Revista Cocar. Sistema de Avaliação da Educação Básica no Brasil: implantação e desafios, 2024.

Revista Educação. Saeb: "melhorem, mas não o destruam", pede membro da OCDE, 2021.

SINTEP-MT. Denúncia sobre pressão sobre professores às vésperas do Saeb. Isso É Notícia, out. 2024.


Nota: Este artigo baseia-se em revisão bibliográfica abrangente incluindo artigos científicos, documentos oficiais, relatórios técnicos e reportagens especializadas, cobrindo o período de 1990 a 2025.


E você? Concorda? Discorda? Vamos continuar esse debate nos comentários. A educação brasileira precisa de vozes que questionem, não que apenas aceitem.

Wadson Benfica

Olá! Sou Wadson Benfica, professor e produtor de conteúdo para a web voltados para área educacional.

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