Quando foi a última vez que você ouviu uma conversa animada entre professores sobre um livro que estavam lendo? Não estou falando daquele livro obrigatório do curso de pós-graduação, nem do manual didático que precisa ser seguido. Falo de uma leitura genuína, escolhida por prazer intelectual, por curiosidade, por sede de compreender melhor o mundo e a educação.
Se você teve que pensar muito para lembrar, não está sozinho. E esse silêncio intelectual nas salas dos professores deveria nos preocupar muito mais do que preocupa.
O Sequestro da Atenção
Vivemos uma mudança radical na forma como consumimos informação. As redes sociais não são apenas uma opção a mais de entretenimento - elas representam uma transformação profunda em nossos padrões cognitivos. O scroll infinito, os vídeos de 15 segundos, as frases de efeito em cards coloridos: tudo isso foi meticulosamente desenhado para capturar e manter nossa atenção. E está funcionando.
O problema não é apenas a quantidade de tempo que passamos nas redes. É a qualidade da atenção que elas exigem - superficial, fragmentada, impaciente. Depois de horas imersos nesse fluxo frenético de informações desconectadas, pegar um livro e acompanhar o desenvolvimento cuidadoso de uma ideia ao longo de páginas e capítulos se torna um esforço hercúleo. Nosso cérebro foi treinado para o sprint; esquecemos como correr a maratona do pensamento.
Os professores, é claro, não estão imunes a isso. Mas há um agravante cruel: além da sedução das redes sociais, há o peso esmagador da burocracia educacional. Diários a preencher, relatórios a enviar, formulários sem fim, plataformas que travam, senhas que vencem, documentações que se multiplicam como praga. Ao fim de um dia lidando com alunos indisciplinados, pais exigentes e sistemas digitais que prometem facilitar mas complicam, quem tem energia para abrir um Paulo Freire, um Rubem Alves, um Dermeval Saviani?
A resposta honesta é: quase ninguém. E isso não é uma falha moral individual dos professores. É o resultado previsível de um sistema que drena toda a energia vital da profissão.
Da Reflexão à Execução: A Robotização do Educador
Mas aqui está o ponto crítico que precisamos enfrentar: quando professores param de ler, param de pensar. Ou melhor, passam a pensar cada vez menos por conta própria e cada vez mais segundo scripts que lhes são entregues prontos.
Um professor que não lê pensadores da educação, que não acompanha debates intelectuais, que não expõe suas certezas ao choque de ideias diferentes, vai gradualmente perdendo sua capacidade de análise crítica. Vai se tornando um executor de tarefas, não um intelectual transformador. Aplica metodologias sem compreender seus fundamentos filosóficos. Segue cartilhas sem questionar suas premissas. Reproduz conteúdos mecanicamente, sem conectá-los a uma visão mais ampla de mundo e sociedade.
É o que chamo de robotização silenciosa. Não é dramática como um filme de ficção científica. É sutil, gradual, quase imperceptível. Mas o resultado é devastador: professores que funcionam no modo automático, reagindo a estímulos (um novo documento para preencher, uma nova demanda da direção, uma nova exigência da secretaria) sem tempo ou energia para pensar sobre o sentido maior do que estão fazendo.
E aqui está uma questão incômoda que precisamos fazer: essa robotização serve a alguém? Professores que não leem, que não pensam criticamente, são mais fáceis de controlar, mais dóceis diante de reformas educacionais mal pensadas, menos capazes de resistir à precarização crescente da profissão. Não estou sugerindo uma conspiração consciente, mas talvez uma funcionalidade sistêmica: um professor intelectualmente esvaziado é um professor politicamente inofensivo.
O problema não fica contido na vida do professor. Ele transborda diretamente para a sala de aula. Um professor sem repertório intelectual não forma alunos críticos e autônomos. Forma, na melhor das hipóteses, reprodutores eficientes de informações para provas. Na pior, forma pessoas que aceitam passivamente tudo o que lhes é dito, incapazes de distinguir conhecimento sólido de opinião rasa, incapazes de pensar por si mesmas.
E Se Começássemos Pequeno?
Mas nem tudo está perdido. Longe disso. E a solução não precisa ser heroica ou grandiosa para ser real e transformadora.
E se, em vez de lamentar que não temos tempo para ler, começássemos com 15 minutos por dia? Um capítulo antes de dormir. Alguns parágrafos no ônibus. Um artigo no intervalo, em vez do scroll automático no Instagram. Parece pouco, mas são mais de 90 horas de leitura por ano - suficiente para vários livros que podem reacender a chama intelectual.
E se algumas escolas criassem clubes de leitura para professores? Não mais um "curso obrigatório de formação continuada", mas um encontro genuíno, onde educadores escolhem juntos o que querem ler e discutem sem a pressão de relatórios e certificados. Um espaço onde é permitido discordar, questionar, pensar em voz alta.
E se resgatássemos os clássicos da pedagogia brasileira? Não como relíquias do passado, mas como interlocutores vivos. O que Paulo Freire diria sobre o uso acrítico de inteligência artificial na educação? Como Rubem Alves reagiria à padronização obsessiva dos currículos? Que perguntas Anísio Teixeira faria sobre a escola pública de hoje?
E se usássemos a própria tecnologia a nosso favor? Há podcasts excelentes sobre educação, filosofia, ciência. Há audiolivros que permitem "ler" enquanto fazemos outras tarefas. Há comunidades online de educadores que debatem com seriedade e profundidade. A tecnologia não é o inimigo - o uso passivo e acrítico dela é.
E se, coletivamente, começássemos a resistir à burocratização excessiva? Não de forma ingênua ou individual, mas organizada. Questionar relatórios redundantes. Simplificar processos. Reclamar quando plataformas digitais são impostas sem treinamento adequado. Exigir que a formação continuada seja realmente formativa, não apenas cumprimento de protocolo.
A Revolução de Cada Dia
Não vou romantizar: é difícil ser um professor leitor no Brasil de hoje. Os desafios são reais - salários indignos, jornadas exaustivas, condições precárias, desvalorização social, burocracia sufocante. Negar essas dificuldades seria desonesto.
Mas também é verdade que cada professor que resgata seu papel de intelectual, que volta a ler, que volta a pensar criticamente, representa uma pequena revolução. Porque esse professor entra na sala de aula diferente. Fala com mais propriedade. Conecta conceitos com mais facilidade. Questiona com mais clareza. Inspira com mais autenticidade.
E o mais importante: esse professor não aceita passivamente sua própria robotização. Ele reconhece que pensar dá trabalho, mas que deixar de pensar é abdicar de sua humanidade e de sua profissionalidade. Ele sabe que um educador que não se educa continuamente não pode, de fato, educar.
A robotização é silenciosa, mas a resistência também pode ser. Não precisa de grandes gestos ou manifestos pomposos. Precisa de professores que, apesar de tudo, ainda abrem livros. Que ainda se incomodam com perguntas difíceis. Que ainda se permitem mudar de ideia quando encontram argumentos melhores. Que ainda acreditam que educar é, antes de tudo, um ato de pensamento.
Cada página lida é um ato de rebeldia contra a mediocridade programada. Cada ideia questionada é uma recusa à docilidade intelectual. Cada conversa genuína sobre educação é uma semente de transformação.
A pergunta não é se temos tempo para ler. A pergunta é: podemos nos dar ao luxo de não ler?
