No cenário atual de transformação digital acelerada, um questionamento fundamental emerge para educadores, gestores e formuladores de políticas públicas: devemos priorizar o ensino através das tecnologias ou o ensino das tecnologias em si? Esta não é uma discussão meramente semântica, mas uma questão estratégica que pode determinar o futuro da educação brasileira e, por extensão, a soberania tecnológica do país.
A Dualidade Tecnológica na Educação
A integração da tecnologia no ambiente educacional pode
seguir dois caminhos complementares, porém distintos:
Ensinar através das tecnologias significa utilizar
ferramentas digitais como meios para aprimorar o processo de
ensino-aprendizagem em diversas disciplinas. Nesta abordagem, a tecnologia é um
veículo que potencializa a transmissão de conhecimento, favorecendo
experiências educacionais mais ricas, personalizadas e eficientes.
Ensinar as tecnologias implica desenvolver
competências técnicas específicas, preparando estudantes para compreender,
criar e modificar sistemas tecnológicos. Aqui, a tecnologia deixa de ser apenas
meio e torna-se o próprio objeto de estudo.
O Avanço das Inteligências Artificiais: Desafio e Oportunidade
O advento das Inteligências Artificiais (IAs) generativas
como ChatGPT, Claude e Gemini intensificou este debate. Estas ferramentas
representam simultaneamente uma revolução nas possibilidades pedagógicas e um
desafio às práticas educacionais tradicionais.
Por um lado, as IAs oferecem oportunidades sem precedentes
para personalização do ensino, automação de tarefas administrativas e ampliação
do acesso a conteúdos educacionais de qualidade. Por outro, sua utilização
acrítica pode aprofundar desigualdades, promover dependência tecnológica e
comprometer o desenvolvimento de habilidades fundamentais.
A Terceira Via: Integração Consciente e Soberania Tecnológica
Diante deste dilema, emerge uma terceira via que integra
ambas as perspectivas: uma educação que utilize criticamente as tecnologias
como meio pedagógico enquanto desenvolve competências para sua compreensão e
criação. Esta abordagem está intrinsecamente vinculada a um projeto nacional de
soberania tecnológica.
No Brasil, a soberania tecnológica não é apenas uma questão
econômica ou de segurança, mas um imperativo educacional. Um país que apenas
consome tecnologias estrangeiras, sem capacidade de compreendê-las,
modificá-las ou criar suas próprias soluções, permanece em situação de
dependência.
A Educação Pública como Pilar da Soberania Tecnológica
A educação pública apresenta-se como elemento central para
qualquer projeto de autonomia tecnológica nacional. Por sua capilaridade e
alcance, o sistema público de ensino constitui a principal via para
democratizar o acesso ao conhecimento tecnológico e formar uma geração capaz de
contribuir para o desenvolvimento de soluções nacionais.
Para concretizar este potencial, algumas diretrizes são fundamentais:
1. Formação Docente Ampliada
Os educadores precisam ser capacitados não apenas para
utilizar tecnologias em sala de aula, mas para compreender seus fundamentos,
limitações e implicações sociais. Um professor que entende como funcionam as
IAs, por exemplo, pode orientar seus alunos sobre usos éticos e produtivos
dessas ferramentas.
2. Infraestrutura Tecnológica Adequada
A democratização do conhecimento tecnológico exige acesso
universal a equipamentos, conectividade e softwares. Mais que simplesmente
distribuir dispositivos, é necessário garantir sua manutenção, atualização e
suporte técnico adequado nas escolas públicas.
3. Desenvolvimento de Pensamento Computacional
Para além do uso instrumental, é essencial desenvolver o
pensamento computacional desde as séries iniciais, capacitando estudantes a
compreender e resolver problemas com lógica algorítmica, independentemente do
dispositivo utilizado.
4. Currículo Integrado e Contextualizado
A tecnologia não deve ser tratada como disciplina isolada,
mas integrada transversalmente ao currículo, com aplicações contextualizadas à
realidade brasileira e às necessidades locais, promovendo soluções para
problemas concretos da sociedade.
5. Estímulo à Produção e Não Apenas ao Consumo
Os estudantes devem ser estimulados a criar tecnologia, não
apenas a consumir produtos prontos. Iniciativas como clubes de programação,
robótica educacional e desenvolvimento de aplicativos podem transformar jovens
consumidores em potenciais criadores.
6. Parcerias Estratégicas
A colaboração entre escolas públicas, universidades,
institutos de pesquisa e empresas nacionais de tecnologia pode criar
ecossistemas de inovação que aproximem a educação básica das fronteiras do
conhecimento tecnológico.
O Papel Estratégico das Inteligências Artificiais
No contexto das IAs, especificamente, a educação pública
brasileira precisa adotar uma postura equilibrada entre: (1) aproveitar seu
potencial pedagógico para personalizar e aprimorar o ensino; (2) desenvolver
compreensão crítica sobre seus mecanismos e limitações; e (3) fomentar
capacidades para desenvolvimento de soluções nacionais nesta área.
A recente criação do Plano Brasileiro de Inteligência
Artificial representa um passo importante, mas sua efetividade dependerá da
integração entre políticas educacionais e estratégias de desenvolvimento
tecnológico.
Conclusão: Por uma Educação Tecnologicamente Soberana
O debate entre ensinar através das tecnologias ou ensinar as
tecnologias em si revela-se, portanto, uma falsa dicotomia. O caminho mais
promissor para a educação brasileira é a integração consciente destas duas
dimensões, alinhada a um projeto nacional de soberania tecnológica.
Em um mundo crescentemente digitalizado e impactado por
tecnologias disruptivas como as IAs, a educação pública tem o potencial e a
responsabilidade de formar cidadãos que não apenas utilizem criticamente estas
ferramentas, mas que também sejam capazes de compreendê-las, adaptá-las às
necessidades nacionais e, eventualmente, criar soluções genuinamente
brasileiras.
Este é o verdadeiro caminho para uma educação que não apenas acompanhe as transformações tecnológicas, mas que contribua decisivamente para um projeto de nação tecnologicamente soberana, inclusiva e inovadora.